O mundo mais fascinante, o mais poderoso e atrativo é, sem dúvida, o mundo das relações. Durante toda a nossa vida somos seres em relação, primeiro com a família nuclear, que modela a nossa fortaleza e os nossos medos, depois com amigos, colegas e, finalmente, com alguém por quem nos apaixonamos e passa a ser único para nós.
Hoje, como sempre, as pessoas procuram encaixar as relações íntimas num molde comum, que as torne menos assustadoras. Assim, todos consideram que o normal seja namorar com alguém, de idade aproximada à nossa, casar, ter filhos e viver felizes para sempre. Sem mais nem menos. Como se falar de amor fosse uma linha reta com um ponto de início e um ponto final. Contudo raramente é assim tão simples, porque as pessoas e as suas relações são essenciais na evolução de cada ser individual e, quer o desejemos ou não, obrigam-nos a passar por desafios, tormentos e paraísos, tudo à mistura, até aprendermos as lições que temos de aprender. Nem que seja perceber que nem tudo tem de ter lógica. Que nem tudo é só preto ou branco. Que nem sempre – ou quase nunca – o que é verdadeiramente importante se pode programar ou «driblar». Normalmente apanha-nos desprevenidos, na curva de um «acaso» , e deixa-nos sem respostas…
Daphne Rose Kingma, terapeuta relacional, diz que se a «alma» estiver no comando das nossas relações, há alguns atributos essenciais que nos permitem apurar a sua «qualidade». São dez esses atributos que medem a qualidade de uma relação e o primeiro é o que ela define por «auto consciência». «Autoconsciência é conhecer-se sensata, verdadeira e profundamente e agir segundo esse conhecimento» na relação. Não é um simples «enamorarmo-nos», mas optarmos por amar, sendo agentes ativos, conscientes, verdadeiros, na relação. Coloca questões como esta: «O que considero essencial num par?», «O que anseio por receber e estou disposto a dar numa relação?». No fundo deixa-nos na posição de optarmos, a cada momento, pelo que construímos nas nossas relações íntimas. Às vezes, por medo, deixamos que sejam as circunstâncias a liderar as nossas escolhas. Não raras vezes escolhemos, não o que verdadeiramente queremos, mas aquilo que nos parece mais «confortável» e conformamo-nos com uma relação «pela metade».
O 2º atributo é a «vivacidade». Vivacidade é entusiasmo, alegria. É algo que faz o nosso coração disparar na proximidade de alguém querido, que nos faz sentir «vivos» por dentro. «Se a relação que mantém no momento ou planeia para o futuro não tem vivacidade, de modo a fazer com que se sinta animado, indómito, extremamente sereno, belo, pensativo, apaixonado, aberto, ousado, sensual e sensível – então talvez deva continuar a procurar. Para ser digna da sua alma, uma relação deve proporcionar-lhe a sensação de que tanto você como ela estão vivos – e continuam a renascer continuamente», Diz D. R. Kingma, e concordo inteiramente, porque só a vivacidade numa relação aproxima, só ela evita que se instale a monotonia, a rotina, o «deixa andar» de tantas relações. Vivacidade é ter entusiasmo e alegria na presença de alguém: um entusiasmo e uma alegria que mais ninguém consegue dar…
O 3º atributo é o «realismo» que a autora define assim: «realismo é dizer a si próprio a verdade sobre o que é possível na vida». No fundo este realismo é o que nos permite considerar o que queremos verdadeiramente, combinado com o que é possível. Convida-nos a ser flexíveis e perspicazes, a dizer ao outro o que queremos (sem amuos ou ressentimentos) a ser tão abertos que «desarmemos» o outro. Se não somos capazes de dizer a alguém o que esperamos da relação, como queremos que ela mude no que tem de menos bom? Se não somos realistas, podemos ser conformistas ou idealistas, mas de uma forma ou de outra não escolhemos, livremente, o que queremos para a nossa vida a dois.
O 4º atributo é a «honestidade». Ser verdadeiros numa relação, implica deixar o nosso verdadeiro «eu» emergir, nas suas fraquezas, força, loucura ou até medos. É ser o que somos, é «abrir ao outro o invólucro secreto do nosso ser. Pedir que esse ser secreto e frágil também seja amado». Significa assumir, a cada momento, o risco de se expor, de abrir a alma, de ter a coragem de dizer, a quem amamos, com um cuidado sagrado, o que achamos que está bem e o que está mal na relação, assumindo a nossa quota parte de culpa. Ao abrirmos ao outro a nossa alma, expondo-a, convidamo-lo a fazer o mesmo. Se a relação for verdadeira, mesmo de momentos de profunda dor podem surgir tesouros de amor e crescimento mútuo. Se não for… talvez não valha a pena insistir…
O 5º atributo é a «generosidade». Numa relação «a verdadeira generosidade é simplesmente dar sempre, como se fossemos uma fonte, um rio, um oceano, como se o que temos para dar nunca acabasse, como se não tivéssemos mais nada a considerar senão o dar em si». É curioso como este ponto me parece a melhor «medida» para percebermos, com os nossos «botões», se amamos ou não alguém. Porque amar é uma necessidade incontida de dar e dar e dar. Mesmo sem receber na mesma medida, mesmo que o outro se afogue em nós. É dar porque não se pode conter no peito um oceano. E o incrível em tudo isto é que, quanto mais damos, mais cresce a vontade de dar o que temos para dar. Não cansa, não farta, não apetece parar de «investir» naquela pessoa, porque é ela a única no mundo capaz de nos preencher.
O 6º atributo é a «empatia», que se define por sentir as dificuldades do outro como se fossem nossas. É «vestirmos» a pele do outro, perceber nas suas palavras ditas e não ditas, os seus medos, desejos, ânsias, fraquezas, ou falta de autoestima. É dizer, por gestos concretos: «aceito-te como és, gosto de ti assim», é pensar em formas de amar aquela pessoa, naquela circunstância de vida. Com um abraço, com palavras, ou até com silêncio, porque se existe empatia «lemos» a alma do outro e ao compreender o que lá está escrito aceitamos, implicitamente, o outro na sua totalidade, com defeitos e qualidades, tal como é.
O 7º atributo é o «perdão», que significa «uma dilatação do coração». Nas relações é uma oferta de compreensão, de uma 2ª oportunidade – ou de mais de cinquenta oportunidades – a quem nos ofendeu. O perdão exige extrema coragem. Requer total abertura e comunicação. O perdão «expande-nos» até nos permitir ver o outro lado da ofensa. Em vez de julgar, permite compreender que somos todos seres imperfeitos, que todos podem cometer a maior parte dos erros humanos. O perdão permite «ouvir» o outro em vez do nosso orgulho (justamente) ferido e avaliar, naquela situação específica, qual o nosso grau de culpa na ofensa. Só quem ama, a sério, consegue perdoar…
O 8º atributo fala de «ação de graças». A vida, embora nem sempre pareça, «não é um problema, mas um milagre, um dom, um ensinamento, uma celebração». Cada um de nós se cruza com relações que precisa de viver para crescer, para entender a própria vida, para avaliar o privilégio que significa sentir, dar, receber, até perder. Muitas vezes perder é a única forma de avaliarmos, de forma radical, o valor que damos ao outro, a nós mesmos e à qualidade das nossas relações. Por isso passamos por momentos de magia, de encanto, de magníficas coincidências (todos os aparentes acasos trazem uma mensagem codificada para a alma), de terríveis perdas, de incompreensões, de mágoas. Até aprendermos o que temos de aprender, porque cada pessoa por quem nos apaixonamos, cruza a nossa vida, seja por um minuto seja por uma vida, para lá deixar «tatuada» uma marca eterna, uma mudança, uma bênção. Essa pessoa veio porque tinha de vir, mesmo que nos cause dor ou perplexidade. No amor cruzamos com almas que, sendo nossas companheiras eleitas, são o suporte da nossa própria existência. Muitas vezes só conseguimos avaliar até que ponto alguém é importante para nós, ao perdermos essa pessoa…
O 9º atributo é a «consagração». É perceber que é na entrega total do nosso ser que nos realizamos. É no doar do nosso amor, pondo o outro à frente das nossas próprias necessidades, que cumprimos a nossa verdadeira missão. Ao fazê-lo colocamos o outro no «altar» sagrado da dádiva, da negação do egoísmo. Se não sentirmos uma felicidade imensa, por termos esse «outro» especial ao nosso lado, então é porque a relação parou nalguma «estação» do seu percurso e tem de ser «consertada», para que possa seguir em frente.
E finalmente o 10º atributo, a «alegria», que numa relação é criada com gestos pequeninos, com mensagens de carinho, com surpresas que se fazem com prazer, com paixão, com sentido de humor, com diálogo, com a vontade permanente de estar com o outro, de o «saborear», de ficar feliz, só porque «ele» ou «ela» existem. Sem esta alegria, uma relação é como comida sem sal: alimenta, mas não sacia; cumpre a sua função de nos dar segurança na vida, mas não dá prazer…
D. R. Kingma deixa clara que «No domínio das relações nunca sabemos com certeza absoluta se escolhemos a relação certa ou se fizemos as escolhas certas. Abundam mistérios, assim é o poder e o capricho da alma». Quanto mais possuímos estes dez atributos, mais nos expandimos, tornando-nos «amantes magnificentes, divinamente inspirados». Muitas vezes definimos uma boa relação, como aquela que é duradoura, não porque nela exista amor, sensualidade, verdade ou alegria, mas porque a sua estrutura visível, seja ela o casamento ou a ligação, sobreviveu no tempo. É o conteúdo, não a forma que interessa. Por isso temos de escolher, de arriscar, de ser suficientemente honestos para criar e recriar, constante, determinada relação de forma a mantê-la viva, com energia. Não é o tempo, mas a qualidade, que define o sucesso de uma relação.
A autora deixa um recado, que, pessoalmente, considero fundamental para prevenirmos «doenças» nas nossas relações. Passo a transcrever: «Ainda não nos apercebemos que amar alguém não exige que o façamos diariamente, aninhados na mesma caverna ou no mesmo castelo (…) O lado negativo deste contacto diário é tornarmo-nos demasiado íntimos, considerarmo-nos mutuamente garantidos, fartarmo-nos de nos vermos uns aos outros de roupões velhos, chinelos e roupa interior todos os dias. A rotina diária só por si pode prejudicar a radiosidade do amor. O que imaginamos vir a aumentar com a proximidade frequentemente diminui. Na maravilhosa acessibilidade da vida quotidiana, podemos esquecer-nos de ser sublimes e deslumbrantes uns com os outros e tornar-nos aborrecidos e banais. Não amamos mais, nem melhor, nem de uma forma mais bela; o amor torna-se um hábito em vez de uma exaltação do coração». E isto, quer sejamos capazes de o admitir ou não, não é só culpa do outro. Numa relação há duas pessoas, duas metades, duas almas. Se eu não estou feliz com a minha relação, então cabe-me a mim, fazer o possível e o impossível para a renovar. A mim, sobretudo a mim, porque dela depende a qualidade ou fracasso da minha própria felicidade, a médio ou a longo prazo. E, com a felicidade, bem assim como com o amor não se pode brincar impunemente. Nunca!