"É Tão Curto o Amor, Tão Longo Esquecimento"

Poema Vinte - Pablo Neruda

(tradução de Fernando Assis Pacheco)

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Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada, e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".

O vento da noite gira no céu e canta.

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Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Eu amei-a e por vezes ela também me amou.

Em noites como esta tive-a em meus braços. Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava. Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

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Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela. E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la. A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe. A minha alma não se contenta com havê-la perdido.

Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a. O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores. Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei. Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos. A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.

Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda. É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços, a minha alma não se contenta por havê-la perdido.

Embora seja a última dor que ela me causa, e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

Reprodução
Reprodução

Acabei de ler um livro magnífico. Um livro que aguçou o meu lado de voyer, o lado que espia os sentimentos, as emoções, as histórias que vivo, por empréstimo, ao entrar no palco de outras vidas. O livro chama-se «O teu nome flutuando no adeus» e é uma coletânea de histórias autobiográficas de nove romancistas consagrados. Não histórias felizes, mas histórias de amores inesquecíveis, mas fracassados, amores que tatuaram a memória e a vida dos seus protagonistas, que foram avassaladores, mas fugazes na felicidade imensa que trouxeram. A felicidade, se calhar, é sempre fugaz…

Houve uma, sobretudo, que me marcou. Por ser contundente. Por ser brutalmente realista. Falarei dela. Há outra, de Mempo Giardinelli, que me levou até ao «Poema Vinte» , de Neruda, que fui pesquisar e, como todos os poemas de Neruda, me fascinou e me trouxe até aqui, à confissão da escrita. Neruda escreve : «é tão curto o amor, tão longo o esquecimento» , e ao ler e reler as suas palavras, penso que tem razão. Que para quem ama, para quem sentiu alguma vez a força da paixão, a sensação é essa: é tão curto o amor… parece sempre que corre contra o tempo. Uma hora torna-se um minuto, um segundo, se for feliz. Por outro lado, ao acabar, ao deixar atrás de si o rasto do vazio, pode tornar um minuto de dor em mil anos. Pode tornar o esquecimento uma luta, sem tréguas, eterna, como um inferno imposto.

A estória que me marcou e que me fez fazer a ponte com Neruda é da autoria do escritor Horácio Vasquez-Rial. Chama-se «A vergonha de ter sido, a dor de já não ser» e fala de um amor que, por preconceito, medo, vergonha, o autor, que fala na primeira pessoa, recusou assumir. Um amor negado, reprimido e que o tempo não deixou menos amargo. Porque há sentimentos que, se forem negados, não morrem. Pelo contrários, começam a viver nas entranhas da alma, como lobos num covil. Criam raízes no escuro, na dor, na obsessão. Ficam maiores por serem negados. Amores, como este, que por causarem «vergonha», por fugirem dos cânones normais imposto pela sociedade (afinal o que é normal no amor? ) não podem ser assumidos. Amores auto - destrutivos. Amores, por isso mesmo, incuráveis. O autor da estória confessa a sua cobardia, o seu fracasso e chega à seguinte conclusão: «A maioria das pessoas passa por este mundo sem nunca se apaixonar. Acha que se apaixona, e atua em conformidade, mas não se trata senão de pura e simples química da conservação da espécie. Morrem sem terem vivido isso. É um privilégio pela primavera que nos invade. Quanto ao resto não. Porque vendo bem, só há duas possibilidades: ou a paixão se realiza e, portanto, morre, ou não se realiza e, portanto, morre. Se desemboca em amor, em serena companhia e até em anos de bom sexo, vale a pena, mas na minha modestíssima e parcial estatística, isso acontece num casal em cada dez milhões e estou a ser generoso ao estabelecer que há dez milhões de casais, vinte milhões de pessoas no mundo, que conhecem a paixão. A maioria parte das vezes, quase sempre, desemboca em extinção, desmoronamento e fedor, como acontece com todos os incêndios: um espetáculo feio e aborrecido. Ah, mas quando a paixão desemboca em si mesma, quando se fecha por uma causa exterior ou por uma decisão brutal, e não se transforma numa prazenteira calma nem num chocante aborrecimento a dor que fica é tão enorme e brutal que tudo o resto se esquece, se perde, e só um milagroso instinto nos pode impedir de escolher a morte.»

Como já disse, sou uma voyer … observo, vivo por empréstimo sentimentos, emoções, vidas e histórias que se tornam minhas, quando as disseco para lhes extrair a alma. Faço-o com a precisão de um cirurgião que usa o bisturi para retalhar o sítio certo. Faço-o já sem hesitar, porque o tempo se encarregou de me roubar a capacidade de me espantar. De me chocar. Sei que tudo é possível, até a estupidez dos preconceitos, que tantas vezes se abraçam, em troca de própria felicidade. Há poucas paixões que possam ser eternas e felizes. Ou são felizes e correm para o rio calmo do amor, e morrem assim, sem dor ou espanto, ou não são felizes e acabam, na mesma, por mil razoes diferentes, todas dolorosas, sendo a mais dolorosa a paixão negada, amordaçada, não assumida, que fica para sempre a pairar, como um espectro, na paisagem das nossas memórias.

A paixão é uma sede e ninguém escolhe ter sede. A sede sacia-se, ou aguenta-se até ao desespero…até à morte. Diz novamente o autor, ao falar de Donna, a sua paixão negada e reprimida: «é assim a paixão, é assim a vida. Não consegue: nem o tempo nem as forças o conseguem. O desejo é mais longo do que a vida. O desejo: tudo aquilo que não se possui, ou não é. O que não se é acaba por derrotar o que se é. O resultado sabe-se desde sempre, mas apesar disso, aceitamos o desafio e corremos. Como Aquiles, a consolar-se com a ideia de que o competidor é apenas a porcaria de uma tartaruga. Donna foi isso. Uma sede. Não se apagou quando deixámos de nos ver. Só se apagou quando encontrei uma nova sede. Uma nova dependência. Mais serena. Prolongável em amor tranquilo com a aluda da idade. » . Tem razão , então, Alberoni quando diz que a dor de um amor só pode curar-se quando um novo amor vier, como as ondas do mar, varrer a praia de uma alma, levando memórias ou tornando-as secundárias, suportáveis, inóquas. Pelo menos à superfície…porque algo em mim segreda que um amor negado nunca pode ser realmente esquecido. O desejo do próprio desejo é maior que qualquer realidade e os amores negados vivem no reino dos desejos reprimidos. São bombas inclusas. Rebentam, continuamente, para dentro…

Mas há ainda algo mais que não se pode ultrapassar, mesmo com a chegada da primavera de uma nova paixão. É o sentimento de arrependimento, pelo que não se fez. Não pelo que se fez, mas pelo que não se assumiu, pelo que não se ousou, pelo que se recusou viver. Pela porção de felicidade negada. Di-lo novamente o autor desta fantástica história, apaixonado por uma prostituta, que amou, com vergonha, e chorou para sempre, ao escolher dizer-lhe adeus. Confessa-o assim: « Dizem os padres da Igreja Católica que aquele que se arrepende dos seus pecados tem mais mérito do que aquele que não peca. Um mísero álibi. Eu estou com Espinoza, que diz que aquele que se arrepende é duplamente iníquo: por aquilo que fez e por se arrepender. Ele não fala de pecado, felizmente. Não me arrependo de nada que eu haja vivido. Mas muitas vezes me interrogo sobre o que não vivi, e assalta-me o temor de não haver sido suficientemente corajoso.»

E termino aconselhando todos os que adoram espiar almas, como eu, a ler o livro «O teu nome flutuando no adeus». Faz-nos pensar que sem amor, sem paixão, a vida nunca atinge o pico da verdadeira felicidade, mas, atingindo-a, o ser humano torna-se um refém do que viveu e perdeu, porque há sensações e sentimentos que só podem ser temporários. São grandes demais para se tornarem permanentes, são vento, são água, são luz….usufruem-se, não se possuem… deixam sempre uma saudade terrível, porque, começo a acreditar, quem sente uma vez que seja o pico máximo da paixão, torna-se um viciado na emoção de o sentir. Não sei se nos prendemos a alguém que desperta esse sentimento, ou se é ao sentimento que nos agarramos. Mas sei que viver sem ter ousado sentir, no corpo e na alma, o estigma da paixão, é viver pela metade. Talvez um minuto de total felicidade justifique uma vida inteira de saudade. Tenho o pressentimento que é a isso que se refere Neruda quando diz: «É tão curto o amor e tão logo o esquecimento»… .