Os efeitos da gratidão no coração
Apetecia-me pegar neste título, escrevê-lo em letras gordas e enormes e não dizer mais nada: «A GRATIDÃO É A MEMÓRIA DO CORAÇÃO», afirma um provérbio Francês. E acho que está quase tudo dito...
Vou apenas pegar no «quase» que falta – para não estragar o essencial – e partilhar convosco porque acho esta frase tão importante. Mas primeiro deixem-me explicar o seguinte: há pelo menos cinco atitudes humanas que me tiram do sério. Me deixam com «nós» cá dentro. Me fazem mal. Uma delas é a violência gratuita. Outra é a injustiça. Acrescento a traição, continuo com a hipocrisia e termino com a ingratidão. Todas elas representam uma forma de agressão. Todas deixam traumas, porém a que mais subtilmente me magoa é a ingratidão. Porquê?, bom, porque ser ingrato é fazer conscientemente mal – por omissão, distração ou falta de escrúpulos – a quem nos fez bem, de coração aberto. É por isso que dói, porque mexe precisamente com o coração, com os sentimentos, com a nossa inocência.
Desde pequena sempre ouvi os meus pais e avó a defenderem, com uma devoção inabalável, aqueles a quem se sentiam gratos. E eu aprendi que ser grato é, em primeiro lugar, ser leal. É não esquecer quem nos ajuda; é saber dizer obrigado por palavras e gestos. Para mim faz todo o sentido dizer que a gratidão é a memória do coração, porque afinal só o coração guarda o que é muito importante: guarda as palavras amigas que nos salvaram num momento de angústia; guarda os gestos de amizade que nos ajudaram a atravessar uma crise ou a vencer um obstáculo; guarda o tempo que alguém nos deu do seu tempo. Memoriza as batalhas que outras almas travaram por nós...
Assim, quando somos atingidos pela ingratidão, somos duplamente magoados: primeiro porque não estávamos «à defesa» e o golpe nos apunhala em cheio, onde somos mais vulneráveis – nos nossos sentimentos. Segundo, porque nesses momentos nem a ira nos pode ajudar. A ingratidão não provoca raiva, mas desgosto. Uma sensação indefinida de vergonha e de incompreensão total. A nossa confiança é abalada. Os nossos valores postos em causa. Ficamos vazios, aturdidos e estúpidos. Não queremos sequer acreditar no que nos fizeram. Procuramos desesperadamente justificações e sentimos uma dor fininha dentro do peito que o aperta muito, muito. Depois chega a terrível compreensão. Percebemos que não há, afinal, nenhum mal-entendido. Que aquela pessoa por quem muitas vezes demos a cara o tempo e pedaços de vida, nos deu, de facto, uma «patada» e continua a viver tranquilamente, alheia ( ou talvez não...) aos estragos que causou.
Se afirmo tudo isto com tanta convicção é porque, algumas vezes na vida, direta ou indiretamente, já experimentei o sabor amargo e desiludido da ingratidão. E nunca me habituo à sensação de dor irreal que provoca. Nunca! Tive, assim, de aprender uma lição muito triste: há pessoas com uma memória emocional muito «curta». Pessoas que sofrem de «amnésia interior». Não o fazem de propósito. A maioria das vezes nem se apercebem que estão a ser ingratas, simplesmente esquecem o bem assim que o recebem. Apagam-no das suas memórias. Fazem um «delete» total ao programa e começam um texto novo...
É claro que só estou para aqui a pintar o lado negro da questão, que está longe de representar uma experiência maioritária na minha vida. Felizmente tenho o privilégio de conhecer muitas pessoas com um coração maior do que elas. Pessoas que fazem o bem por espírito de militância, por vocação. Pessoas que, quando sofrem a ingratidão, não se deixam intimidar por ela nem a deixam minar a sua capacidade de entrega aos outros. Estas ensinaram-me uma lição fundamental: mesmo que a ingratidão seja o preço a pagar, vale sempre a pena ajudar os que nos pedem ajuda, dar o que está ao nosso alcance, acreditar num projeto ou num ideal e lutar para o pôr em ação. Vale a pena, pelo simples motivo que fazê-lo nos oferece o que ninguém pode oferecer: uma consciência limpa e inteira.
Há uns tempos uma mãe dizia-me:
- Os meus filhos são muito ingratos. Sempre fiz tudo por eles, mas agora que são adultos, sempre que preciso dum deles nunca têm tempo para mim. Primeiro está a vida deles. Nunca percebem se estou cansada, ou doente, ou triste... – e, depois de uma pausa que eu não me atrevi a quebrar, continuou:
-
...mas, mesmo assim, faria tudo de novo por eles. Fiz e dei o melhor que podia e sabia e continuo a fazê-lo. Nada me pesa na consciência e essa sensação de dever cumprido ninguém me pode roubar. O que eu tenho é o que eu dei!
E este foi para mim um precioso ensinamento: «o que eu tenho é o que eu dei». Não devemos lamentar o bem que fazemos a alguém que não sabe como retribuir. O bem não se faz para ser recompensado. Faz-se porque se quer. Além disso, quem fica sempre «mal» é o ingrato, o que tem a memória do coração atrofiada. É ele que fica com uma dívida a saldar com a vida. É ele que perde em termos humanos.
Cada vez estou mais convencida que nascemos para aprender umas tantas lições. A humilhação, a dor, a injustiça – a ingratidão! – são «professoras» fantásticas. Duras, mas convincentes, porque nos reduzem ao nosso tamanho real. Nos fazem ver o outro e aprender a respeitá-lo. Nos ensinam «a não fazermos o que não queremos que nos façam a nós» e nos previnem para não cairmos na esparrela do orgulho, que nos torna desatentos aos demais. Com o seu humor certeiro, Milôr Fernandes falou assim dos orgulhosos: «Estranha é a química do corpo humano: você põe uma coroa na cabeça de um homem e ele fica logo com o rei na barriga».
Quando, mesmo inconscientemente, não respeitamos o código da lealdade e da gratidão com aqueles que nos ajudam a caminhar pela vida – sejam eles familiares, amigos, conhecidos ou
desconhecidos – estamos com o «rei na barriga». Perdemos a capacidade de ser justos e humildes. Atentos e inocentes.
Saber dizer «obrigado», mesmo que seja em silêncio, é um atributo das almas mais nobres. Não imaginamos como podemos magoar – até destruir! – aqueles com quem somos ingratos. Conheço algumas pessoas com «corações de ouro» que, de tanto serem «rasteiradas» por aqueles a quem fazem bem, se tornaram pessoas ressentidas e desconfiadas. É pena. Não devíamos dar a ninguém o poder de destruir as nossas virtudes. Podemos sempre perder batalhas, mas nunca seremos «fracassados» se nos dermos com verdade e idealismo. Temos o direito e o dever de dizer à pessoa que foi ingrata connosco que a sua atitude nos magoou mas, depois, devemos seguir em frente. Esquecer. Perdoar, porque só quem perdoa é livre para ser feliz sem condições.
Face a tudo isto – e porque o «quase» do inicio deste artigo já vai longo – termino concluindo que se a gratidão é uma forma de memória, a devemos treinar com afinco. É muito triste chegarmos ao fim da nossa vida e percebermos – às vezes muito tarde... – que vivemos com a memória do coração doente, ou, algures pelo caminho, nos esquecemos que tínhamos um coração a bater no peito. Em ambos os casos estamos a precisar duma «cura» para o nosso «esquecimento». O saldo de uma vida nunca é medido pelo que recebemos, mas sim pelo que fomos capazes de dar ou de reconhecer, agradecidamente, que nos foi dado. Leiam a pequena parábola que vos ofereço, de Paulo Coelho, do seu livro «Maktub» e perceberão, certamente, onde quero chegar quando falo de ingratidão e da necessidade de não esperar muito tempo para «curar» esse lapso afetivo nas nossas vidas:
«Um ancião à beira da morte procura um jovem e narra-lhe uma história de heroísmo: durante uma guerra ajudou um homem a fugir. Deu-lhe abrigo, alimento e proteção. Quando já estavam a chegar a um lugar seguro, esse homem decidiu trai-lo e entregá-lo ao inimigo.
-
E como é que você escapou? – pergunta o jovem.
-
Não escapei, sou o outro, sou aquele que traiu – diz o velho –. Mas, ao contar esta história como se fosse o herói, posso compreender tudo o que ele fez por mim.»